quinta-feira, 16 de julho de 2009

Fuma-se cachimbo na Transilvânia?

A Transilvânia, em primeiro lugar, não existe.

Sim, sim, aqui em Bucareste estou cercado de gente que alega ter nascido na Transilvânia, que a Transilvânia é formada por várias cidades, muitas delas fundadas no século XIII por colonos alemães convidados pelo rei húngaro para popular a zona; sim, sim, os mapas insistem em mostrar que a zona localizada entre a planície da Panônia e os Cárpatos é um planalto e que ali seria a Transilvânia, palco de tantos combates conduzidos por povos nômades, húngaros, austríacos, turcos; sim, sim, a Transilvânia, em mapas mais antigos, chama-se Iaziges Metanaste, e também Dácia, terra dos dácios, povo trácio que se opôs sem sucesso ao avanço das centúrias romanas no século II.

Mas a Transilvânia, a verdadeira Transilvânia, caro leitor, a verdadeira Transilvânia não existe. Ela é pano de fundo das estórias soturnas do vampiro de Bram Stoker, de Nosferatu, de Conde Orlok, da Condessa Elisabeth Bathory, de lendas antigas e inomináveis. Afinal, como poderia um lugar chamado Transilvânia existir? Desde criança sabemos que esse nome está ligado a terras esfumadas, para lá da fronteira do real e do palpável, para lá da cartografia e de quaisquer evidências que tentem nos convencer do contrário.

Cachimbo se fuma sim na Transilvânia: vi uma vez em meio aos seus bosques espessos, ao lado do castelo do Drácula, cercado por lobos e ursos carpatinos, o Saci Pererê, surgido de um redemoinho e cachimbando como o diabo com seu sorriso matreiro.

publicado originalmente em maio de 2007

Os velhos ciganos carregam troncos?

A maior população absoluta de ciganos da Europa se encontra na Romênia. Há quem diga que eles teriam chegado a este território trazidos pela Horda de Ouro. Certo é que eles foram escravizados pela nobreza local até meados do século XIX, e que vieram da Índia, e não do Egito, como alegaram já certas teorias (daí a palavra inglesa "gypsy", "egípcio", para designar o cigano). Hoje os ciganos, do ponto de vista dos não-ciganos, estão diante do grande desafio de adaptação ao mundo dito moderno. Sua cultura nômade, de regras próprias e costumes inflexíveis, tem sido um empecilho à sua boa absorção por parte da sociedade romena, recém-adotada pela União Européia e seu "bafo civilizador". Não sabemos o que será dos ciganos nômades, dos ciganos músicos, dos ciganos domadores de ursos, dos ciganos ourives, dos ciganos comerciantes de cavalos dentro das próximas décadas. Mas, não importa onde estejam, eles vão-se reunir sempre em torno de uma fogueira, fazendo pulsar suas leis e sua força de coesão comunitária, nem que, para acendê-la, seja necessário arranjar um tronco de árvore.

publicado originalmente em maio de 2007

Um poema romeno já gerou um roteiro de cinema?

Justamente o próximo filme que Francis Ford Coppola vai tirar do forno, Youth without Youth, é todo baseado no conto fantástico Tinerete fara de Tinerete, do romeno Mircea Eliade (1907-1986), que estou traduzindo para a Editora 34.

Mircea Eliade, cujo centenário é comemorado este ano, ficou mais conhecido entre os brasileiros como historiador das religiões, embora tenha sido também autor de extensa literatura ficcional.

Juventude sem Juventude é uma estória muito misteriosa que gira em torno do fenômeno do rejuvenescimento e de todos os temas essenciais a ele conectados: a memória, a vida eterna, o tempo que passa.

No fim dos anos 30, o velho professor moldavo Dominic Matei, recém-diagnosticado com esclerose, desembarca na estação central de Bucareste e é fulminado por um raio no Sábado de Aleluia. Não morre. Pelo contrário, rejuvenesce. A partir daí, a trama genial, envolvendo serviços secretos e interesses de Estado, acaba se desenrolando de maneira inesperada, mas sempre extremamente verossímil, na Suíça, Malta e Índia.

Quiçá o filme e a tradução despertem o merecido interesse pelos ainda desconhecidos - no Brasil - contos fantásticos de Eliade.

publicado originalmente em junho de 2007

Tem bigodes o prefeito de Brasov?

Capital e maior município da atual província de mesmo nome, Brasov (pronuncia-se "Brachóv") já se chamou também, ao longo de sua história secular, Brassó em húngaro, Kronstadt em alemão e, nos primeiros anos do regime comunista romeno, Orasul Stalin (Cidade Stalin).

Não causa susto, portanto, conhecer o fato de que sua população dividiu-se basicamente em três grandes grupos étnicos, representados de maneira quase equilibrada: romenos, alemães e húngaros. Estes últimos, conforme o recenseamento de 1930, constituíam 40% dos habitantes. A II Guerra Mundial e suas conseqüências alteraram, entretanto, pelos mais diversos motivos, as cores desse belo mosaico demográfico. Hoje em dia, 90% da população é constituída por romenos.

Dados que não impedem, contudo, que o bigode do prefeito de Brasov siga uma determinada moda. Como é amplamente sabido, o bigode húngaro tem suas pontas viradas para cima. Ao passo que o bigode romeno, conforme os retratos medievais dos príncipes da Valáquia e da Moldávia, tem suas pontas viradas para baixo.

Em possuindo o prefeito de Brasov ascendência húngara, logo serão as pontas de seu bigode - caso tenha bigode - viradas para cima. Em possuindo ascendência romena, as pontas de seu bigode - salvo sua inexistência - serão respectivamente viradas para baixo. Uma mistura de sangue romeno-magiar - não raro recorrente - determinará, por lógica, uma ponta para baixo e outra para cima, um equilíbrio dinâmico na curvatura das pontas, imberbidade contínua provocada por tensão genética, uma complexa mistura dos itens anteriores ou de nenhum deles.

Adicionando-se à equação a ascendência alemã, chega-se a uma mais ampla e laboriosa panóplia de possibilidades bigodais, que deixo a cargo do leitor curioso. De pesquisas realizadas junto aos grupos de estudo e laboratórios mais renomados, resulta que o bigode alemão sofreu ao longo do tempo diversas metamorfoses, além de ter sido vítima freqüente das mais diversas correntes estéticas.

Como pode-se observar na foto do Kaiser alemão Guilherme II, que nunca foi prefeito de Brasov, embora o bigode à chomberga seja virado para cima, ele não goza da textura e da delgadeza do bigode húngaro, com pontas igualmente voltadas para cima. E, menos ainda, de qualquer semelhança com o bigode extra-carpático, visivelmente virado para baixo, como no caso dos antológicos príncipes Vlad Tepes e Estêvão o Grande.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A ficção policial romena está solta?

Em 1934, Agatha Christie já involuntariamente profetizava, em seu romance Murder on the Orient Express, os crimes que viriam a ser perpetrados na Romênia de 1946, a bordo do mesmo famoso e luxuoso trem Expresso Oriente, que ligava Paris a Istambul.

Numa manhã de agosto de 1946, antes de o trem chegar a Bucareste, um dos controladores encontrou, estirado dentro de uma das cabines, um homem morto. Tratava-se de um diplomata suíço, assassinado a golpe de faca na carótida, muito provavelmente enquanto o trem ainda passava pela Transilvânia - não por suspeitarem de algum ataque vampírico, mas porque os detetives calcularam que o ferimento havia sido produzido cerca de 10 horas antes.

Uma semana mais tarde, outro diplomata foi encontrado morto no Expresso Oriente. Dessa feita, um diplomata soviético, cujo assassinato provocou inclusive um protesto oficial da Embaixada da URSS em Bucareste. Causa da morte: golpe mortal na carótida.

No dia seguinte, enquanto a polícia romena já se punha a investigar esse segundo crime, ocorreu um terceiro: mais um diplomata soviético encontrado morto numa cabine do Expresso Oriente, com a carótida cortada. Mistério. Tratar-se-ia de contas por acertar entre espiões internacionais? Não havia quaisquer indícios, e a Embaixada da URSS, ao invés de colaborar, fazia chover protestos sobre o governo romeno.

Como em diversos outros casos e áreas, a realidade, quase sempre, consegue superar a ficção, o que nos muito confunde ao tentar traçar a fronteira entre uma e outra. O dossiê dos crimes supramencionados foram estudados algumas décadas mais tarde por Traian Tandin, policial bucarestino atualmente aposentado, que tem publicado livros em que relata os casos mais curiosos que teve o privilégio de investigar durante sua vida profissional.

Um desses livros inspirou, em 2006, uma série romena de televisão chamada Martor fara voie (Testemunha Involuntária), que contou inclusive com a participação de um personagem brasileiro - um escroque carioca - interpretado por um ator igualmente brasileiro. Muito inocente, aliás, se comparado ao autor dos verdadeiros crimes do Expresso Oriente: um certo Vasile Fronescu, ex-batedor de carteiras promovido a assassino por circunstâncias pessoais e baleado mortalmente numa cabine daquele trem por um comissário de polícia que lhe armara uma emboscada.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Qual é a melhor maionese da Moldávia?

Há quem diga que a cidade de Mahón, capital da ilha espanhola de Menorca, conhecida como Maó em catalão e por um famoso queijo artesanal, leva a fama de ter dado origem e nome à maionese, que teria se difundido pela Europa graças aos franceses, após terem eles invadido as ilhas Baleares no século XVIII.

Fato é que a maionese acabou atingindo alto nível de popularidade no espaço russo no século seguinte. Tudo indica que sua difusão deveu-se em grande parte ao mestre-cuca de origem belga Lucien Olivier, que na década de 1860 foi proprietário de um dos mais badalados restaurantes moscovitas da época, o Hermitage. Atribui-se a Olivier [na foto, sua pedra funerária num cemitério de Moscou] a criação da assim-chamada salada russa, que na própria Rússia é conhecida como salada Olivier. Como bem sabe o leitor, essa salada exige considerável quantidade de maionese.

Espaço russo significa também, desde 1812, Bessarábia, até então tradicional parte integrante do território histórico do principado da Moldávia, localizado entre os rios Prut e Dniester. A russificação, tanto espontânea como planejada, daquela província tzarista mormente habitada por um povo de etnia romena, trouxe previsivelmente consigo hábitos alimentares que incluíam a maionese tão utilizada no cardápio russo.

Ali, essa tendência recentemente culminou na produção de maionese pela fábrica Belmar, antiga indústria de margarina da cidade de Balti, a segunda maior cidade do que hoje em dia constitui a República Moldova.

Em 2008, a firma lançou uma agressiva campanha publicitária em todo o país no intuito de expandir o consumo de sua maionese. A campanha, presente na televisão, cartazes, calendários e outdoors, girou em torno do legendário Lucien Olivier, encarnado nada mais nada menos por um... brasileiro, e que "ressuscita" para revelar, em alto e bom francês, o verdadeiro segredo da salada russa: a maionese Belmar, claro.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Treino é treino e jogo é jogo em Bucareste?

Em Bucareste, jogo é treino. O nível de improvisação é tamanho, que parece que se vive num lugar onde o faz-de-conta é rei. Do parlamento à mercearia da esquina, da companhia de distribuição de corrente elétrica à administração do condomínio, todos parecem nadar, com uma alegria infantil, em torrentes de papéis verbosos, carimbos e assinaturas, como se aquilo, e apenas aquilo, justificasse sua posição. O resto, ou seja, o bom andamento das coisas, fica nas mãos de deus, seja lá qual for, ou da boa sorte de cada um. O fatalismo se infiltra por tudo e por todos, como um reumatismo indolor que faz crescer a audácia dos audazes e aprofundar o medo dos covardes junto com ao menos um grão de desequilíbrio clínico.

A interação com o quotidiano palpável pode ser comparada à leitura de um contrato capcioso: qualquer entrelinha desapercebida ou mal interpretada pode significar o início de uma infindável tragédia pessoal. Nessa grande improvisação coletiva, parecem sempre ganhar os maliciosos, os espertalhões, os que se lançam lubricamente nos movimentos internos da sociedade, os mais ardilosos atrevidos, ao passo que perdem - nesse jogo com toda a cara de treino - os prudentes, os apolíneos, os inflexíveis que não conseguem sambar nesse ritmo de temerários. Esse quadro, quero acreditar, no entanto, é no final das contas o retrato - alçado a uma valência incomum - da sociedade humana em geral; quadro que impõe a catalogação de cada indivíduo conforme uma inclemente dicotomia: tolo ou trapaceiro.

A própria cidade, construída sobre um terreno arenoso exatamente na linha de reverberação da mais importante falha tectônica da Europa Oriental, é a materialização dessa profunda desconsideração pelo imanente: terremotos engoliram e continuarão engolindo seus prédios, sua história, seus habitantes.

Espetáculo em que a coragem é apresentada com grosseria, em que a famosa frase de O Príncipe de Maquiavel (retrato) é aplicada com agressiva ostentação exclusivamente em prol do interesse pessoal e jamais do comunitário, essa manifestação bucarestina se traveste com freqüência de sentimento de vítima e de uma gosmenta bajulação: quem não estiver tentando tirar proveito imediato de você, estará se queixando de sua própria sorte ou tratando de seduzi-lo hoje para uma eventual utilização amanhã.

Isso não ocorre, pelo menos com tanto vigor, em outras regiões do país. O transilvano moroso ergue casas de pedra, que não permitem a improvisação. Lá, jogo é jogo. O moldavo inventivo e poético não conhece a perversidade de enganar. Lá, treino é treino. O romeno, em geral, interessa-se com profundidade pelo seu interlocutor, vai além, ultrapassa as aparências, onde jogo e treino se misturam, se perdem e são desprezados.