quinta-feira, 4 de junho de 2009

Treino é treino e jogo é jogo em Bucareste?

Em Bucareste, jogo é treino. O nível de improvisação é tamanho, que parece que se vive num lugar onde o faz-de-conta é rei. Do parlamento à mercearia da esquina, da companhia de distribuição de corrente elétrica à administração do condomínio, todos parecem nadar, com uma alegria infantil, em torrentes de papéis verbosos, carimbos e assinaturas, como se aquilo, e apenas aquilo, justificasse sua posição. O resto, ou seja, o bom andamento das coisas, fica nas mãos de deus, seja lá qual for, ou da boa sorte de cada um. O fatalismo se infiltra por tudo e por todos, como um reumatismo indolor que faz crescer a audácia dos audazes e aprofundar o medo dos covardes junto com ao menos um grão de desequilíbrio clínico.

A interação com o quotidiano palpável pode ser comparada à leitura de um contrato capcioso: qualquer entrelinha desapercebida ou mal interpretada pode significar o início de uma infindável tragédia pessoal. Nessa grande improvisação coletiva, parecem sempre ganhar os maliciosos, os espertalhões, os que se lançam lubricamente nos movimentos internos da sociedade, os mais ardilosos atrevidos, ao passo que perdem - nesse jogo com toda a cara de treino - os prudentes, os apolíneos, os inflexíveis que não conseguem sambar nesse ritmo de temerários. Esse quadro, quero acreditar, no entanto, é no final das contas o retrato - alçado a uma valência incomum - da sociedade humana em geral; quadro que impõe a catalogação de cada indivíduo conforme uma inclemente dicotomia: tolo ou trapaceiro.

A própria cidade, construída sobre um terreno arenoso exatamente na linha de reverberação da mais importante falha tectônica da Europa Oriental, é a materialização dessa profunda desconsideração pelo imanente: terremotos engoliram e continuarão engolindo seus prédios, sua história, seus habitantes.

Espetáculo em que a coragem é apresentada com grosseria, em que a famosa frase de O Príncipe de Maquiavel (retrato) é aplicada com agressiva ostentação exclusivamente em prol do interesse pessoal e jamais do comunitário, essa manifestação bucarestina se traveste com freqüência de sentimento de vítima e de uma gosmenta bajulação: quem não estiver tentando tirar proveito imediato de você, estará se queixando de sua própria sorte ou tratando de seduzi-lo hoje para uma eventual utilização amanhã.

Isso não ocorre, pelo menos com tanto vigor, em outras regiões do país. O transilvano moroso ergue casas de pedra, que não permitem a improvisação. Lá, jogo é jogo. O moldavo inventivo e poético não conhece a perversidade de enganar. Lá, treino é treino. O romeno, em geral, interessa-se com profundidade pelo seu interlocutor, vai além, ultrapassa as aparências, onde jogo e treino se misturam, se perdem e são desprezados.

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